Ele era um virtuose do violino. Eletrizava as plateias, onde quer que se apresentasse.
Amealhara uma situação invejável, em solo italiano, aonde chegara, criança ainda.
Lembrava dos dias de incerteza dos primeiros anos. No entanto, fora acolhido e educado, numa instituição que recebia exilados de terras distantes.
Sua genialidade musical logo fora identificada e ele conquistou os palcos.
O sucesso que o mundo aplaudia, no entanto, não consumira sua mágoa.
Quando o sucesso lhe permitiu, retornou à sua terra natal e ali fixou residência, continuando a percorrer o mundo, conquistando aplausos.
Jamais voltou ao bairro e à casa de sua infância. Aquelas eram recordações que ele não desejava.
Trazia, no corpo, cicatrizes que falavam de maus tratos na infância. Na alma, as marcas eram ainda mais dolorosas e profundas.
Era tido como um artista excepcional. Traduzia a sensibilidade quando tocava seu violino e penetrava nas asas das composições dos grandes mestres.
Exigente, duro, não admitia erros. Nos ensaios, manifestava a sua raiva a quem errasse uma nota, causando atrasos, exigindo recomeços.
Foi depois de uma noite excepcional de aplausos que, ao sair do teatro, um homem lhe chamou a atenção.
Malvestido, cabelos longos, barba por fazer. O olhar apelativo. Inigualável. Jamais o poderia esquecer.
Aproximou-se e o identificou. Era o irmão mais velho que o colocara no navio para a Itália, o acomodara e lhe dissera para ficar ali. Ele logo voltaria.
No entanto, simplesmente desaparecera. Ele, garoto, fizera a viagem sozinho, abandonado.
Chegara ao solo estrangeiro, sem mesmo conhecer o idioma e sofrera toda sorte de amarguras, antes que galgasse os degraus da fama.
Por isso, foi com raiva que disse ao irmão, sem mesmo ouvi-lo, que fosse embora.
Vejo que está pobre, miserável. Vai querer agora que eu o abrigue, reparta com você o que consegui em anos de trabalho e dor?
Anos de mágoa criaram palavras duras, ácidas.
Meses depois, procurado pelas autoridades, foi-lhe informado que seu irmão morrera, vitimado por doença que o consumia, desde algum tempo.
Foi ao conhecer alguns amigos dele que soube a verdade. Ele não fora abandonado. Seu irmão, poucos anos mais velho, conseguira o dinheiro para uma passagem. Uma só.
Por isso o colocara no navio. A passagem era para ele, o mais jovem, se libertar de um padrasto maldoso que somente os agredia.
Ele renunciara à liberdade para que o irmão pudesse ser livre.
* * *
Então, depois de anos de tormenta represada, o violinista cedeu às lágrimas e extravasou toda a sua dor e seu remorso.
Por que não procurara saber a verdade? Por que não deixara que seu irmão falasse, naquele reencontro noturno?
E todas as respostas nos conduzem a um só pensamento: não alimentemos ódio em nossa intimidade. Deixemos que quem nos busca, na noite da amargura, descerre o coração.
Há tempo de falar. Sempre será tempo de ouvir. Lembremos disso.
Redação do Momento Espírita, com base
no filme turco O violino do meu pai
(Babamin Kemani).
Em 25.3.2022.
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