Ela era uma velhinha que morava sozinha, em uma grande casa. Não tinha amigos porque, ao longo dos anos, ela os vira morrer, um a um.
Seu coração era um poço de saudade e de perdas. Por isso, ela decidira que nunca mais se ligaria afetivamente a ninguém.
E, para se lembrar de que um dia tivera amigos, passara a chamar as coisas pelos nomes dos amigos que haviam morrido.
Sua cama se chamava Belinha. Era grande, sólida e confortável.
A poltrona da sala de visitas se chamava Frida. Haveria de durar muitos anos mais.
A casa se chamava Glória. Tinha sido construída há mais de cem anos, mas não aparentava mais de vinte. Era feita de uma madeira muito forte, vigorosa.
E o carro, grande, espaçoso se chamava Beto. Haveria de servir, pensava a velhinha, para alguém, depois de minha morte.
E assim ela vivia. Solitária.
Certo dia, quando estava lavando a lama de Beto, um cachorrinho chegou no portão. (O portão não tinha nome, porque ela achava que ele logo iria ter que ser substituído. Suas dobradiças estavam enferrujadas e a madeira apodrecida).
O animalzinho parecia estar com fome e ela tirou um pedaço de presunto da geladeira e lhe deu, mandando-o embora.
Porém, no dia seguinte, ele voltou. E no outro e no outro. Todos os dias, ele vinha, abanava o rabo e ela o alimentava, mandando-o embora.
Ela dizia que Belinha não comportava um adulto e um cachorro, que Frida não gostava que cães sentassem nela e Glória não tolerava pelo de cachorro.
E Beto? Bom, esse fazia os cachorros passarem mal.
Um ano depois, o animal estava grande, bonito. E tudo continuava do mesmo jeito. Até que um dia ele não apareceu.
Ela ficou sentada na escada, esperando. No dia seguinte, também. Nada.
Resolveu telefonar para o canil da cidade e perguntar se eles tinham visto um cachorro marrom. Descobriu que eles tinham dezenas de cachorros marrons.
Quando perguntaram se ele estava usando coleira com o nome, ela se deu conta de que nunca dera um nome para ele.
Sentou-se e ficou pensando no cachorro marrom que não tinha coleira com um nome. Onde quer que estivesse, ninguém saberia que ele tinha de vir todos os dias até seu portão para que ela lhe desse de comer.
Tomou uma decisão. Dirigiu Beto até o canil e falou para o encarregado que queria procurar o seu cachorro.
Quando ele lhe perguntou o nome do cachorro, ela se lembrou dos nomes de todos os amigos queridos aos quais havia sobrevivido.
Viu seus rostos sorridentes, lembrou-se de seus nomes e pensou em como fora abençoada por ter conhecido esses amigos.
Sou uma velha sortuda, pensou.
O nome do meu cachorro é Sortudo, ela disse.
E gritou, ao ver os cães no grande quintal:
Aqui, Sortudo!
Ao som da sua voz, o cachorro marrom veio correndo. Daquele dia em diante, Sortudo morou com ela.
Beto parece que gostou de transportar o cachorro. Frida não se incomodou que ele sentasse nela. Glória não ligou para os pelos do cachorro.
E, todas as noites, Belinha faz questão de se esticar bem para que nela possam se acomodar um cachorro marrom sortudo... e a velhinha que lhe deu o nome.
* * *
Não temamos nos afeiçoar às pessoas. Ninguém consegue viver sem amor, sem amigos, sem ninguém.
Não nos enclausuremos em solidão, nem percamos a oportunidade extraordinária de amar.
Amemos a quem nos rodeia. Também à natureza e os animais, recordando que tudo é obra do Excelente Pai que nos criou.
Redação do Momento Espírita, com base no livro
A velhinha que dava nome às coisas, de autoria
de Cynthia Rylant, ed. Brinque Book.
Em 13.4.2015.
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